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História

Unifesp coordena escavações no antigo prédio do Doi-Codi na Vila Mariana

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A antiga sede do Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações e Defesa Interna (DOI-CODI), vinculado ao Exército Brasileiro, conhecido como local de realização de tortura de cidadãos contrários ao regime militar em vigência no país entre 1964 e 1985, vem recebendo um trabalho de escavação arqueológica que pretende ampliar o entendimento sobre a rotina local e o cotidiano de quem estava em confinamento, além de subsidiar a criação de um memorial virtual sobre as instalações, sediadas naVila Mariana.

Em trabalho de pesquisa conduzido pela professora Cláudia Plens, do Laboratório de Estudos Arqueológicos (LEA) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em conjunto com a professora Aline Vieira de Carvalho, pesquisadora do Laboratório de Arqueologia Pública da Unicamp, e o docente Andres Zarankin, do Laboratório de Estudos Antárticos em Ciências Humanas (Leach) da UFMG, foram aplicadas, de forma integrada, técnicas de Arqueologia, Arqueologia Forense e Arqueologia Pública nas escavações, cuja primeira fase foi realizada em agosto de 2023 e, agora, se prepara para o início de uma segunda etapa dos trabalhos, que irá expandir a área de busca de vestígios e inscrições.

Dentro da primeira fase de escavações, a etapa de Arqueologia Forense, realizada pela Unifesp, fez uso da pesquisa de georadar e decapeamento de paredes e pisos da edificação para análise das alterações e, principalmente, para encontrar material biológico (como sangue e urina) e vestígios de escrita que as vítimas possam ter deixado no local. Uma das principais descobertas foi a localização de uma inscrição em um banheiro, realizada possivelmente por uma das vítimas para contagem do tempo de confinamento.

“Esses pequenos fragmentos são essenciais para entendermos o cotidiano de quem estava em confinamento e fazer com que a sociedade repense o que aconteceu nesse espaço a partir desses elementos materiais”, diz Cláudia Plens, que explica que essas descobertas humanizam o período ao transformar estatísticas em histórias pessoais tangíveis, enfatizando o sofrimento individual e a resistência ao regime ditatorial. “A pesquisa das paredes serve como um testemunho concreto contra o negacionismo, documentando as violações de direitos humanos e reforçando a importância do registro histórico. É um lembrete poderoso da necessidade de preservar a memória histórica, promover a justiça e proteger a dignidade humana”, relata a professora.

Além do debate histórico, a pesquisa no DOI-CODI tem um caráter inovador que servirá de parâmetro para outros trabalhos do tipo. “Poucos centros de tortura foram submetidos a pesquisas arqueológicas com enfoques tão abrangentes, incluindo a perspectiva forense. As limitações metodológicas nos permitem conduzir uma investigação que pode servir de modelo para ser aplicada em outros contextos. Esperamos contribuir significativamente para o campo da Arqueologia Forense e para a memória histórica dos eventos de repressão”, pontua Cláudia Plens.

O trabalho de escavação no DOI-CODI ganha um significado adicional neste ano, em que se completam 60 anos do Golpe Militar. “As escavações são vitais para a recuperação da verdade, muitas vezes obscurecida pelos regimes autoritários. Há quem se recuse a acreditar que esses eventos tenham ocorrido, e recuperar esses locais e os restos nelas enterrados permite-nos confrontar diretamente as atrocidades cometidas, proporcionando uma narrativa mais precisa e completa da história, o que é essencial para o processo de justiça, tanto formal quanto social”, analisa a professora, que cita também a importância para o reconhecimento e reparação das famílias das vítimas e comunidades afetadas.

Nesse contexto, a Arqueologia se mostra como uma ferramenta para que a sociedade reconheça e se confronte com as sombras de seu passado, estimulando uma reflexão sobre a importância da democracia e dos direitos humanos. “Além de ser fundamental para honrar os que sofreram e assegurar que as futuras gerações compreendam a importância de proteger a liberdade e a dignidade humanas acima de tudo, a escavação é um instrumento de educação ao nos lembrar da fragilidade das democracias e do perigo das ideologias autoritárias, o que é essencial no trabalho de prevenção contra a repetição dessa história”, pontua a pesquisadora.

Comunidades indígenas

Os crimes cometidos na ditadura não são exclusivos ao ambiente urbano. Os povos indígenas foram fortemente impactados pelas políticas implementadas durante o regime, com a invasão de terras, ameaça à integridade de suas culturas e, principalmente, com a perda de vidas em consequência às ações diretas ou políticas de desenvolvimento e segurança nacional vigentes no período.

Em escavação realizada em julho de 2023, também conduzida pela professora Cláudia Plens, em projeto fruto de colaboração internacional liderada pela Unifesp, foi encontrada uma vala comum que, em conjunto com entrevistas com a comunidade, proporcionou melhor compreensão sobre um incidente que culminou na morte de cerca de 80 indígenas em dois dias, no Mato Grosso.

“Naquela ocasião, mesmo ciente sobre uma epidemia de sarampo que assolava a comunidade de São Marcos, o grupo Marãiwatsédé foi compulsoriamente transferido para o local – outro território Xavante, mas sem comunicação com o outro – em avião da Força Aérea Brasileira, a pretexto do desenvolvimento agrário em seu território tradicional”, relata a pesquisadora.

Nesse contexto, a pesquisa visa dar amplitude às experiências e resistências dessas comunidades, tornando público o sofrimento das vítimas afetadas e oferecendo uma compreensão mais abrangente e justa dessa triste página da história brasileira.

Por Ligia Gabrielli/Unifesp

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