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“Não usem mais o termo cracolândia”

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Usuários de crack são marginalizados e precisam de alternativas, não são problema de saúde ou segurança, disse Carl Hart, neurocientista americano que falou em palestra na Vila Clementino

Não é verdade que com uma ou poucas vezes em que se experimenta o crack já se vicia. Não é verdade que as pessoas que vivem pelas ruas do centro da cidade, e que fumam pedras de crack, sejam “viciadas” ou que fumem o dia todo. Não é verdade que o crack seja mais forte que a cocaína – eles têm a mesma composição química. Não é verdade que aquelas pessoas precisem de internação compulsória. Não é verdade que essas pessoas tenham difícil recuperação. Não é verdade que, se tiverem oportunidade, usam a droga compulsivamente até a própria morte. E, por tudo isso, não se deve chamar aquele local de “cracolância”.
“Isso é bizarro”, dispara o autor destas opiniões, o neurocientista americano dr. Carl Hart, que está no Brasil e visitou Brasília, Rio de Janeiro e, em São Paulo, esteve na região central e garante: o mal, ali, como em favelas ou outros lugares que são notícia apenas pela “guerra às drogas”, não está no usuário ou no pequeno traficante, mas sim na miséria e na falta de oportunidades.
Carl Hart foi o principal destaque em uma mesa de debates que contou também com a presença de Raquel Peyraube, médica especialista no uso problemático de drogas e assessora da Secretaria Nacional de Drogas do Uruguai. Para uma plateia lotada no auditório Marcos Lindenberg, da Unifesp, na Vila Clementino, eles arrancaram aplausos em vários momentos. Ambos acreditam que há uma histeria em torno do tema e que, na verdade, toda sociedade sempre precisou e sempre precisará de drogas – sejam elas legais, como o álcool e o tabaco, controladas, como ansiolíticos e outros remédios, ou as atualmente proibidas. Ele trabalha especialmente para que a posse de drogas deixe de ser considerada crime, e passe a ser no máximo uma infração, como ocorre em transgressões leves no trânsito. “80% dos negros presos nos Estados Unidos estão lá por porte de drogas, a maioria maconha”, relata. Ele também tem severas críticas ao próprio país por conta da diferenciação feita na legislação entre crack e cocaína, que tecnicamente são a mesma substância, o que teria prejudicado exclusivamente a população pobre e negra.
Já Raquel trabalhou no processo de legalização da maconha em seu país, o Uruguai e tem relatado a experiência em outros países. “A verdade é que 30 anos de guerra às drogas se mostraram ineficazes. Não funcionou”, avalia Raquel, apontando que a mudança nas leis de seu país está sendo encarada como uma nova tentativa de conter a criminalidade e manter o problema sobre controle. “As pessoas dizem que o Uruguai liberou a maconha. É o contrário: a erva era liberada antes, agora sim sua produção, comércio e uso serão controlados pelo governo”, explica.
“Morrem mais pessoas na guerra às drogas do que pelo uso de drogas. Há algo muito errado aí”, apontou o neurocientista americano. Ele defende a tese de que a prisão de pessoas pelo porte de pequenas quantidades gera um grave problema social e só aumenta desigualdades, além de representar uma repressão contra os mais pobre e em especial a população negra. “Cerca de 500 jovens negros morrem por ano nas favelas do Rio de Janeiro. Se fossem 500 homens brancos teríamos uma crise”, estabelece.
O neurocientista começou sua palestra relembrando a própria história. Nascido em uma comunidade pobre de Miami, a qual comparou às favelas brasileiras, diz que cresceu acreditando que as drogas eram o principal problema. Já consumiu, vendeu, roubou. Na adolescência, entrou para o exército americano e acabou indo para o Reino Unido. “Lá tive a oportunidade de estudar. E decidi que queria mais. Resolvi me tornar um neurocientista porque achei que poderia salvar minha comunidade da dependência de drogas” relata, explicando que até então acreditava no discurso oficial de que eram as drogas que geravam a violência nos bairros pobres e com alta concentração de negros. “Há nas favelas brasileiras pessoas mais inteligentes que eu, mas a sociedade decidiu que eles não valem a pena”, lamenta.
Hart ainda criticou os políticos e diz que é da sociedade que precisa partir uma nova visão, de forma que se refletirá futuramente na escolha de seus representantes. “Com a guerra às drogas, políticos não precisam lidar com problemas reais, como a falta de educação ou emprego”. A visão fundamental é de que o uso de drogas não é uma questão de segurança, nem tão pouco uma questão de saúde.
“Sempre haverá pessoas que apresentam problemas – seja com o álcool ou com outras drogas, mas não podemos vilanizar as substâncias”, acredita Hart.
A dra. Raquel vai na mesma linha e diz que, no Uruguai, durante a discussão que precedeu a legalização da maconha, um dos principais questionamentos era sobre a ideia de que o uso da planta pode causar esquizofrenia. “Eu respondia com uma pergunta: vocês avaliam que houve crescimento no consumo de maconha nos últimos anos? E sempre me confirmavam, espantados, apresentando números que indicam o crescimento espantoso do consumo de maconha no mundo.

E então eu explicava que os casos de esquizofrenia não cresceram”, diz a médica. Ela acredita que estudos mais antigos podem estar baseados no fato de que muitos esquizofrênicos usam a maconha para relaxar, e não que a planta cause a doença psiquiátrica.
A médica ainda cita vários problemas que ocorrem paralelamente ao tráfico de drogas, como a corrupção – inclusive policial. “Aceitar a realidade não é sinônimo de renúncia. Ética não é retórica, é pragmática. Idealismo moral não é idealismo humanitário”, diz ela, taxativa.
“Fomos ensinados a pensar que é uma questão criminal ou de saúde, mas essas são as consequências da proibição, não a origem”, avalia.
Ambos avaliam que a sociedade precisa acordar para o fato de que, nos últimos 50 anos, houve um enorme fracasso na política que aposta na guerra às drogas. Houve aumento de usuários, da periculosidade das drogas (por conta especialmente da adulteração química), estigmatização de usuários, formação de redes de tráfico, violência e crimes por conta da disputa de territórios, além de corrupção e lavagem de dinheiro. Com duas consequências também para a nação, na visão de Perayube: “fragilizar as estruturas democráticas e violação da soberania nacional”.
Ela e Hart também concordam que o momento é mais propício para a abertura da discussão, não apenas pelo fracasso da guerra das drogas, mas também por conta de mais vozes estarem se levantando na sociedade para trazer uma nova visão sobre o tema. Para os especialistas, a comunicação constante e a divulgação de dados comprovados cientificamentee devem contribuir para a queda de barreiras na abertura.

 

 

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